terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

TRANSEXUALIDADE E SAÚDE

Um assunto, que normalmente é marginalizado, é a transexualidade – da mesma forma que as próprias transexuais. Resolvi trazer esse conjunto de pensamentos, informações e reflexões por enxergar sua importância, e talvez provocar reflexões em vocês também. Uma confusão geralmente criada é sobre as definições de identidade de gênero e orientação sexual – o que, ao meu ver, servem apenas para um entendimento didático, mas que não tem lá grande importância na prática, devido à grande pluralidade humana que não se atém a rótulos. Em seguida, vem o estereótipo criado ao redor das transexuais e travestis (que não são a mesma coisa, diga-se de passagem), que deve ser entendido e descontruído. Por fim, temos o acesso à saúde por parte das pessoas transexuais. Mais especificamente, à cirurgia de transgenitalização, que tem grande um grande impacto na saúde dessas pessoas por diversos aspectos que vão muito, mas muito além do físico.
            Antes de tudo, vamos esclarecer que transexualidade relaciona-se à identidade de gênero, que “faz referência a como nos reconhecemos dentro dos padrões de gênero estabelecidos socialmente”, como o masculino e o feminino. Comportamentos masculinos e femininos são construções estabelecidas pela sociedade, informação afirmada pela ilustre Simone de Beauvoir quando ela diz “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Isso nada tem a ver com a orientação sexual, que se refere à forma com que nos relacionamos com os outros, tampouco com o sexo biológico, a genitália. Na maioria das vezes, pessoas que nascem com o sexo feminino, por exemplo, se reconhecem com o gênero feminino. São as cisgêneras. Porém, quando uma pessoa que nasceu com o sexo masculino, por exemplo, se identifica psicologicamente com o sexo feminino, temos uma pessoa transgênera. No caso apresentado, uma mulher transexual, que independe de cirurgia ou de tratamentos hormonais, tampouco de sexualidade. Afinal, a identificação de gênero acontece de forma psíquica, e não cirúrgica ou medicamentosa, e nem depende de uma relação com outrem.
            Apenas com essa breve e superficial definição, podemos observar que esse grupo de pessoas foge da “normalidade”, da hegemonia. E isso obviamente tem consequências. Qual é a imagem que você cria ao pensar em uma mulher transexual? Provavelmente uma garota de programa, que usa roupas vulgares e habita as esquinas das cidades, à noite, a espera de clientes. De pessoas incapazes, pecadoras, escórias da sociedade, que não têm vergonha e amor próprio, servindo de piada para os noticiários sensacionalistas, ou para rodas de conversa. Que são aberrações da natureza, que não deveriam existir. Que são monstruosidades. Deveriam morrer. Talvez não seja esse o nível do seu pensamento, mas esse é, infelizmente, o senso comum.
            É fato, muitas mulheres transexuais são, sim, prostitutas, mas será que todas elas queriam seguir esse caminho? Tiveram realmente uma escolha, ou outras oportunidades de emprego? Como será a relação delas, no dia a dia, com a família e com a sociedade? Será que a maioria delas têm família, ou foram abortadas tardiamente? Será que elas têm o mesmo direito que as pessoas cisgêneras? Quem se importa?
            E, por falar em direitos, vamos falar de saúde. Você sabia que o SUS realiza ciurgias de transgenitalização (erroneamente denominada cirurgia de mudança de sexo), de acordo com o Processo Transexualizador do Ministério da Saúde? Um grande passo, mas que apresenta enormes limitações e dificuldades de acesso a um serviço que as pessoas transexuais têm direito por serem cidadãs e contribuintes, como todas as outras pessoas. Antes de tudo, temos de ressaltar que existem apenas NOVE hospitais, limitados a SETE estados, que realizam o procedimento; quem deseja passar pela cirurgia necessita cumprir certas etapas, que podem ou não permitir a elegibilidade à cirurgia. A primeira delas é a terapia, de cerca de dois anos, com um psicólogo e um psiquiatra, que geralmente não estão preparados para lidarem com pessoas transexuais. Essa etapa é decisiva, porque é a análise desses profissionais que decide quem deve ou não se submeter ao processo. E onde está a autonomia das pessoas, o respeito ao seu projeto de felicidade e decisão do que fazer com o próprio corpo? Bem, caso a pessoa seja aprovada, ela entra na lista de espera dos hospitais, os nove já citados. Isso gera uma lista de espera que leva décadas, além de limitar o acesso a esses hospitais a pessoas que moram nos Estados específicos, ou que têm condições de acessá-los. E como fica a saúde mental dessas pessoas? Será que elas conseguem lidar com a essa situação, por tanto tempo, sem sofrerem nenhuma consequência? Dito isso, eu pergunto: até que ponto somos iguais perante a lei e até que ponto a saúde é, realmente, um direito de todos? Isso não fica claro com a marginalização de um grupo já marginalizado.
            Não precisamos fazer parte de uma minoria para nos incomodarmos com essas questões. Fato é que transexuais são desassistidas pelo Estado e maltratadas pela sociedade. Oportunidades são negadas por elas serem quem são e assumirem essa identidade e, de forma geral, quase ninguém se importa. Apesar das diferenças, independente de identidade de gênero, orientação sexual ou o que quer que seja, somos todos iguais, somos todos humanos. E devemos nos preocupar com a saúde e com as situações de vida dos nossos iguais – e não só dos nossos iguais.
            Eu sei, deixei muitas reflexões em aberto e muitas questões não respondidas, e que talvez nem tenham uma resposta precisa. Então, proponho a visualização de dois vídeos, extremamente informativos, feitos por duas mulheres transexuais. O primeiro traz Daniela Andrade, mulher militante pelos direitos das pessoas transexuais, que enfrenta a longa fila para a cirurgia de transgenitalização, analista de sistemas e extremamente bem informada, que traz questões de saúde e jurídicas. E Amanda Guimarães, que é Youtuber e difunde diversas informações sobre transexualidade, inclusive compartilhando sua própria experiência. E, apesar de o meu foco ter sido nas mulheres transexuais, os homens transexuais também existem e têm suas questões e devida importância. Mas esse assunto fica para outra discussão.
Responsável pela publicação: Grupo 08 (Eduardo Santiago, Rebeca Nascimento e Jamile Silva)

8 comentários:

  1. Ótimas postagens e reflexões. Enquanto a sociedade não respeitar o direito de escolha sobre o corpo como uma decisão individual e pessoal questões como essa ainda serão polêmicas. Se ela não reconhece esse direito conquistas para flexibilizar/ampliar os atendimentos,procedimentos das cirurgias de transgenitalização torna-se dificultoso. Durante a descrição do texto do protocolo para essa cirurgia me assustei com o tempo de 2 anos de terapia mas logo pensei que seria bom por que caso a pessoa se arrependesse teria tempo para reflexão mas assistindo ao vídeo esclarecedor me fiz novamente a pergunta : Por que dois anos?? Será que não seria o tempo suficiente para tentar "resgatar" a pessoa e o padrão tradicional imposto? O que seria de direito- a liberdade- torna-se uma conquista.

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  2. Achei muito interessante que trouxeram esse tema para o blog, tive a oportunidade de trabalhar com ele em um grupo de pesquisa, de modo que conheci pessoas trans e militantes de Salvador e passei a enxergar um pouco do quanto ainda se tem para lutar até que se consiga uma real igualdade de direitos. Todas as questões que vcs levantaram são muito importantes e precisam ser mais discutidas, já que muitas delas têm graves repercussões na vida de pessoas trans, que precisam do apoio social para que suas demandas sejam atendidas. Enquanto estudante de saúde, uma questão que me incomoda particularmente é a necessidade de um laudo. Mesmo que tenhamos avançado nas discussões relacionadas à identidade de gênero, questões como a necessidade de laudo e outras medicalizantes ainda funcionam como instrumentos de controle sobre os corpos.

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  3. Esse tema deve ser discutido em todos os âmbitos, sempre! Há barreiras para a população LGBT em diversos espaços, estes sofrem tanta violência que acabam por se segregarem - como, por exemplo, as boates gays - visto que não são aceitos dentro dos mesmos espaços que "héteros cis bem resolvidos", como muitos homofóbicos se identificam. Ser LGBT é um tabu, um tabu que precisa ser desconstruído e muito bem explicado, pois a discussão de gêneros é muito complexa e é bem mais do que "homens afeminados vs. homens machos". Hoje, em Salvador, existe um Centro de Referência LGBT, que busca oferecer auxílio psicológico e jurídico a essa população. Um avanço dentre muitos outros que ainda precisam ser alcançados. Nós, profissionais da saúde, temos o dever de proporcionar o mais confortável atendimento a toda a população LGBT, buscar acolhe-los e, principalmente, mostrar-se respeitosos quanto a sua identidade de gênero, procurar saber como a pessoa quer ser chamada, por exemplo.

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  4. Pessoal, Creio que estamos aprimorando as postagens. Mas, em temas tão relevantes e mesmo polêmicos (direito de morrer ou viver, diversidade sexual humana) com tão poucos comentários... De todo modo em particular os dois últimos temas são muito bons. Gostei muito do vídeo da Daniela pelo conteúdo esclarecedor. Somente cada um de nós pode decidir sobre nosso corpo e nossa vida e arcar com as consequências da nossa decisão, não é? Nada de tutela! Nem do Estado, nem da família, nem da Igreja, nem dos maridos/companheiros/namorados...

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  5. Quando se trata de pessoas transexuais ou qualquer tipo de pessoa com sua escolha de identidade que não esteja enquadrado no gênero imposto pela sociedade, vem carregado de preconceitos e dificuldades. Acho que saúde é para todos, independente da identidade que a pessoa escolheu para aí, e é dever do estado garantir isso.

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  6. Fiquei muito impressionada com a minha ignorância em relação a esta temática. Um assunto importantíssimo e tão pouco discutido na nossa sociedade. Vejo que a população LGBT merece uma atenção diferenciada, não só pelas particularidades que eles trazem consigo, mas pela dívida social que a sociedade carrega com essa população. Essa parcela da população, não pode mais ficar marginalizada, o que resta para nós, como futuros educadores em saúde é aprender com essas pessoas, nos informar, para assim podermos prestar um serviço digno e responsabilidade.

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  7. As pessoas que nascem na condição de transexualidade enfrentam uma série de barreiras. A primeira é enfrentar a si mesma, enfrentar o seu próprio corpo, se autoconhecer, se reconhecer enquanto pessoa no mundo que nasceu em condição física totalmente diferente daquela de identidade de gênero, como se reconhece interiormente. Fazer esse enfrentamento é difícil e precisa de acompanhamento psicológico e apoio da família que, geralmente, a pessoa não tem. Além disso, enfrentar a sociedade machista e preconceituosa, na qual não respeita o próximo. Enfrentam dificuldades nos sistemas de saúde o que é um total desrespeito e absurdo, pois saúde é direito de todos e dever do estado.

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  8. Certa vez vi uma reportagem de uma Unidade de Saúde de São Paulo localizada em uma área em que existiam muitas transsexuais. Assim, eles decidiram fazer um horário de atendimento específico de 18:00 horas às 20:00 horas para atender esse grupo vulnerável.
    Como foi abordado na postagem, muitas trabalham como prostitutas (muitas vezes não por escolha) e possuem os horários livres diferente da maioria da população. Além disso, devido a estigmatização preferem não acessar o sistema de saúde no mesmo horário da maioria das pessoas por medo de sofrerem algum tipo de violência e preconceito.
    Achei essa atitude do posto honrável. Que bom seria se todos nós da área de saúde nos preocupássemos verdadeiramente com a saúde do outro.
    Outro ponto interessante nessa postagem é sobre a cirurgia de transgenitalização. Um ponto sempre me chamou a atenção nesse assunto. Para ser autorizada a realização desse procedimento pelos profissionais de saúde deve ser emitido um laudo de transtorno de identidade sexual. O próprio nome já estabelece a transsexualidade como uma doença indo de encontro a toda a luta dessa população.
    Como profissionais de saúde futuros, precisaremos repensar se seremos propagadores de preconceitos ou faremos a diferença.

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